sexta-feira, 25 de março de 2016

CARIDADE X JUSTIÇA
GUERRA JUNQUEIRO
(Transcrição incompleta,
excerto da obra “Velhice do Padre Eterno”)

No topo do Calvário erguia-se uma cruz.
E pregada sobre ela o corpo de Jesus.
Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas
Fugiam pelo céu como grandes manadas
De búfalos. A Lua, ensangüentada e fria,
Triste, como um soluço imenso de Maria,
Lançava sobre a paz das coisas naturais
A merencória luz feita de brancos ais.

As árvores, que outrora nos dias de calor,
Abrigaram Jesus cheio de mágoa e dor
Sonhavam, na mudez hercúlea dos heróis.
Deixaram de cantar todos os rouxinóis.
Um silêncio pesado amortalhava o mundo,
Unicamente ao longe, o velho mar profundo
Decantava -chorando-seus salmos de agonia.
Jesus, cheio de dor, quase a expirar, sorria.

Os abutres cruéis pairavam lentamente
A farejar-lhe o corpo. Às vezes, de repente,
Uma nuvem toldava a face do luar
E um clarão de gangrena, estranho, singular,
Lançava sobre a cruz uns tons esverdeados.
Crocitavam ao longe os corvos esfaimados.
Mas, passando o momento a Lua, branca e pura
Irrompia outra da grande névoa escura
E inundavam-se então as chagas de Jesus
Na pulverização balsâmica da luz.

No momento em que havia a grande escuridão
Jesus sentiu alguém aproximar-se, então
Olhou e viu surgir no horror da treva muda
Cobarde perfil sacrílego de Judas.
O Traidor, contemplando o olhar do Nazareno,
Tão cheio de desdém...tão nobre...tão sereno,
Convulso de terror fugiu...mas neste instante
Cortou-lhe pela frente um vulto de gigante
Que bradou :
É chegado enfim o teu castigo!

O traidor teve medo e balbuciou “Amigo”,
Que desejas de mim ? Dizes...por quem esperas,
Quem és tu ?...”O Remorso, um caçador de feras!”.
0 gigante respondeu. “Eu ando a seis mil anos
A caçar pelo mundo  a alma dos tiranos,
Do traidor, do ladrão, do vil, do celerado.
Na enormíssima jaula atrós da expiação
Eu os trago encerrados...

E quando eu entro ali, na horrenda escuridão,
De tigres, de leões, de abutres, de chacais,
De rugidos de feras, de gritos bestiais,
Tudo fica a tremer...mudo de horror e espanto !
Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.
E quando, em suma, algum dos monstros quer lutar,
Azorrago-o, com a luz febril do meu olhar,
Dando-lhe um pontapé, como num cão mendigo.
Já sabes quem eu sou , Judas, Anda comigo !...”

Como um preso que quer comprar o carcereiro,
Judas, tirou do manto a bolsa do dinheiro
Dizendo: - “Aqui tens... e deixa-me partir”.

Houve um grande silêncio ...O infame Escariote
Como um preso que vê a ponta de um chicote
Tremia...
Finalmente o gigante respondeu :
“Judas, esse dinheiro... podes guardá-lo... é teu!...”.
o ouro da traição pertence ao traidor,
Como o riso á inocência...como o perfume á flor.
Esse ouro é para ti o eterno pesadelo.
Oh, guarda-o bem...que eu quero derretê-lo,
E lançar-to depois, cáustico vivo e ardente
Em cima da consciência...a pútrida...a execrável...
Com ele  fundirei algema inquebrantável
A grilheta  que a tua esquálida  memória
Trará...arrastará pelas galés da História
Durante a  eternidade ilimitada e calma.

Essa bolsa que tens é o cancro da tua alma.
Já se agarrou a ti...ligou-se ao criminoso,
Como a lepra nojenta ao peito do leproso,
Como o imã ao ferro e o verme à  podridão.
Não poderás jamais largá-la de tua mão.

É traidor, assassino, hipócrita, perjuro.
A tua alma, lançada em cima de um monturo
Faria nódoa !...
És tudo o que há de mais infame e vil,
Da barriga do sapo  à baba do réptil.
Sai da existência !  Pede às sombras que te acoite !
Monstro - procura a paz....Verme - procura a noite...
Que o Sol não veja mais por um momento
O teu olhar oblíquo... O teu perfil nojento!
Esse crime, bandido, é um crime que profana
Todas as grandes leis da consciência humana.
Todas as grandes leis da Vida Universal...
Esconde-te na morte, assim como o chacal
No seu covil...Adeus !...Causas-me nojo e asco !

E dito isto, saiu a procurar Pilatos.

Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada.
Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,
Caminhando ligeiro...impávido...terrível...
Como um homem que leva um fim imprescritível,
Uma idéia qualquer... heróica...sobranceira....

De repente estacou. Havia uma  figueira
Projetando na estrada sua longa sombra escura.
Judas, desenrolou a corda da cintura,
Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,
Dando um laço á garganta. O seu olhar odioso
Tinha neste momento um brilho cristalino.

Nisto ecoou através do céu profundo
A voz celestial de Jesus moribundo
Que bradou :
“Traidor, concedo - te o perdão.
Além de meu carrasco és ainda meu irmão.
Pregaste-me na  cruz...é o mesmo ! ...Fica em paz.
Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.
Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrifício.
Não te causes remorso o meu atrós suplício.

Esses golpes cruéis....essas horríveis dores...
As chagas para mim são outras tantas flores...”

Judas fitou ao longe os cerros do Calvário
E erguendo-se viril...soberbo...extraordinário
Exclamou :
Não aceito a tua compaixão.................................
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A Justiça dos bons consiste no perdão.
Um justo não perdoa............................................
................................................e enforcou-se !.
Vila Poeira -  Janeiro l965



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