quinta-feira, 26 de novembro de 2015

OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Vinicius de Moraes
Era ele quem fazia as casas
Onde antes só havia chão;
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam das mãos,
Mas tudo desconhecia
Da sua grande missão.
Não sabia, por exemplo,
Que a casa do homem é um templo,
Um templo sem religião.
Como tão pouco sabia
Que a casa que ele fazia,
Sendo sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato! Como podia
Ele um humilde operário
Compreender como tijolo
Valia mais do que um pão;
Tijolo ele empilhava
Com pá, cimento, esquadria,
Quanto ao pão, ele o comia,
Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia
Com suor e com cimento,
Erguendo uma casa aqui,
Ali, um apartamento,
Além, uma igreja,
Acolá, um quartel e uma prisão.
Prisão da qual sofreria,
Não fosse eventualmente
Um “operário em construção”.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa,
E a coisa faz o operário.
De forma que certo dia,
À mesa, ao cortar o pão,
Operário foi tomado
De uma súbita emoção,
Ao constatar – assombrado –
Que tudo naquela mesa,
Garrafa, prato, facão,
Era ele quem o fazia!
Ele! Um humilde operário,
Um operário em construção.
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens do pensamento,
Nunca sabereis o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento.
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um novo mundo nascia
De que jamais suspeitara.

operário emocionado
Olhou sua própria mão.
Sua rude mão de operário,
De operário em construção.
E olhando bem para ela,
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante extraordinário
Que, qual sua construção,
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo,
Em largo e no coração.
E como tudo que cresce,
Ele não cresceu em vão.
Pois, além do que sabia
Exercer a profissão,
Operário adquiriu
Uma nova dimensão,
A dimensão da poesia.

E um fato novo se deu
Que a todos admiravam:
Que o operário dizia,
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção,
Que sempre dizia “Sim”,
Aprendeu a dizer Não!

E aprendeu a notar coisas
Que antes não dava atenção.
Notou que a sua marmita
Era o prato do patrão;
Que a sua cereja preta
Era o uísque do patrão;
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão;
Que os seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão;
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão;
Que a sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação,
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão;
Mas o patrão não queria
Nenhuma complicação:
Convençam-no do contrário,
Disse ele sobre o operário.
E ao dizer isso, sorria.

Dia seguinte o operário,
Ao sair da construção,
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação,
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado,
Mas quando foi perguntado
Operário disse Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão.
Muitas outras se seguiram,
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção,
Seu trabalho prosseguia,
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário,
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo,
Mostrou-lhe toda a região
E, apontando-a ao operário
Fez essa declaração:

-Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação,
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer ,
Dou-te tempo de mulher;
Portanto, tudo o que vês,
Será teu, se me adorares,
E ainda mais, se deixares
que te faz dizer Não.

Disse!...E olhou o operário
Que olhava e refletia;
Mas o que via o operário
Patrão jamais veria;
Operário via as casas
E dentro das estruturas;
Via casas, objetos,
Produtos, manufaturas,
Via tudo o que fazia
lucro do seu patrão;
E em cada coisa que via,
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse Não!
E o operário fez-se forte
Em sua resolução.
Loucura!  Gritou o patrão,
Não vês o que te dou eu!
Mentira!...Disse o operário,
Não podes dar-me o que é meu!

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração.
Um silêncio de martírios,
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão.
Um silêncio apavorado
Com medo da solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição.
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos,
Dos seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
E uma esperança sincera
Nasceu em seu coração.
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido.
Razão porém que fizera
Em operário construído,
Operário em Construção!
CORVO 1979


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