quinta-feira, 13 de outubro de 2011

História de um cão

HISTÓRIA DE UM CÃO
Luiz Guimarães Jr.
Fonte – Arquivo Amaro Castro Corvo 1966 
amarocastrocorvo@Gmail.com

Eu tive um  cão. Chamava-se Veludo.
Magro, asqueroso, repelente, imundo,
Para  dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo!

Recebi-o das mãos de um camarada
Na hora da partida. O cão gemendo,
Não me queria acompanhar por nada.
Enfim, malgrado seu o fui trazendo.

O meu amigo, cabisbaixo, mudo, olhava-o!
O Sol nas ondas se abismava.
Adeus me disse. E ao afagar Veludo
Dos olhos seus o pranto borbulhava.

Trata-o bem... Verás como rafeiro
Te indicará os mais sutis perigos.
Adeus!...e que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.

Veludo a custo acostumou-se à vida
Que o destino de novo lhe impusera.
Suas rugosas pálpebras sentidas
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, pálido, agitando
A nua calda caminhava errante,
À luz da Lua, tristemente uivando.

Toussenet, Figuiet e a lista imensa
Dos modernos zoólogos doutores,
Dizem que o cão é um animal que pensa.
Talvez tenham razão esses senhores!

Lembro-me ainda, trouxe-me o correio
Cinco meses depois, do meu amigo,
Um envelope fartamente cheio.
Era uma carta. Carta!...Era um Artigo!

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios e árvores gigantes...

 Assombrava-se ainda com a ligeira
Moralidade que encontrara a-bordo.
Contava o caso de uma passageira...
Mil coisas mais de que não me recordo.

Finalmente por baixo disso tudo,
Em nota bene do melhor cursivo,
Recomendava o pobre do Veludo.
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranqüilo e atento
Contemplava-me. E creia que é verdade!
Vi comovido... vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente.
Estendeu-se aos meus pés, silencioso.
Moveu a cauda - Adormeceu tranqüilo
Farto de um puro e satisfeito gozo. -

Passou-se o tempo. Finalmente um dia,
Vi-me livre daquele companheiro.
Veludo para nada me servia.
Dei-o à mulher de um carvoeiro

E respirei. Graças a Deus já posso
Dizia eu- Viver neste bom mundo
Sem ter de dar diariamente um osso,
À um bicho vil, à um feio cão imundo.

Gosto de animais, porém prefiro
À essa raça baixa e aduladora,
Um alazão inglês de cela ou tiro,
Ou uma gata branca e cismadora.

Mal respirei, porém, quando dormia,
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia.
Fui ver quem era... Abri... Era Veludo!

Saltou-me às mãos... Lambeu-me os pés ganindo...
Farejou toda a casa, satisfeito.
E, de cansado, foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.

Praguejei  furioso! Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como um miserável
Ladrão ou pérfido gatuno!

E resolvi enfim!...Certo, é custoso
Dizer em voz alta e confessá-lo.
Para livrar-me desse cão leproso,
Havia um jeito só... Era matá-lo!

Zunia a asa fúnebre do vento.
Ao longe o mar. na solidão... Gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos,
De instante a instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo. Ele surgiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto.
A chuva meus cabelos fustigava...

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas, coléricos, vogamos.
Dava-me força o torvo pensamento.
Peguei um remo e com furor remamos...

Veludo, à proa, olhava-me choroso
Como um cordeiro no final momento.
Embora!...  Era fatal!...  Era forçoso,
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo, ergui-o nos meus braços,
Arremessei às ondas num repente.
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente!

Voltei a terra. Entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
Pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo, nas ondas, moribundo.

Mas, ao despir dos ombros o meu manto,
Notei - ó grande dor - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto.
Era um cordão de prata. Eu tinha-o

Unido contra o coração constantemente
E o conservava com o maior recato.
Pois minha mãe me dera essa corrente
E suspenso à corrente o seu retrato.

Certo caíra além, no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo.
E fora o cão! Foi esse bicho imundo
A causa do meu mal!...Ah, se Veludo,

Duas vidas tivera, duas vidas,
Eu arrancara áquela besta morta,
E áquelas vis entranhas corrompidas...
Nisto ouvi uivar á minha porta...

Veludo arfava. Penetrou-me o quarto
Estendeu-se a meus pés e docemente
Deixou pender da boca o tal retrato,
Suspenso à fina ponta da corrente

Fôra crível, ó Deus!...Ajoelhado
Junto ao cão, estupefato... Absorto!....
Palpei-lhe o corpo, estava engerelado!
Sacudi-o!...Chamei-o!...Estava morto.
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